quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A Razao de colocar o pe na estrada...

Se a nossa vida fosse dominada por uma busca da felicidade, talvez poucas atividades fossem tão reveladoras da dinâmica dessa demanda - em todo seu ardor e seus paradoxos - como nossas viagens." A definição do filósofo Suíço Alain de Botton está em seu livro A Arte de Viajar e expressa com precisão a importância que tem para o ser humano o ato de sair da rotina, jogar tudo para o alto e enfrentar novos caminhos e situações. Quem nunca sentiu a agradável ansiedade que se experimenta no ritual de preparação das malas, no burburinho do saguão do aeroporto, na voz suave e feminina dos alto-falantes anunciando o vôo, na decolagem rumo a outro pedaço do mundo onde se é apenas um ilustre desconhecido? "Viajar é a melhor forma de oxigenar o cérebro, reavaliar condutas pessoais, traçar metas", acredita o fotógrafo Bruno Alves, que desde adolescente aprendeu o prazer de conhecer outros horizontes. "O contato com as diferenças culturais, religiosas e até gastronômicas nos faz mais tolerantes, talvez até mais humildes."

Para o psicoterapeuta Flavio Gikovate, essas sensações acontecem porque as pessoas se sentem muito mais leves e desarmadas enquanto estão viajando. "É como se estivessem despojadas de seus papéis sociais, numa confortável posição de 'zé-ninguém', sem horário nem obrigações rotineiras", diz. O ponto de vista é bastante parecido com o que Alain de Botton descreve em seu livro: "Não é necessariamente em casa o melhor lugar para encontrar o nosso verdadeiro eu. A mobília insiste em que não podemos mudar porque ela não muda; o cenário doméstico nos mantém atrelados à pessoa que somos na vida comum, mas que pode não ser quem somos na essência". Viagens - curtas ou longas - transformaram figuras ilustres da história em todos os tempos. Com apenas 20 anos de idade, Johann Sebastian Bach encarou uma caminhada de mais de 400 quilômetros de Arnstad a Lübeck, na fronteira da Alemanha com a Dinamarca, para conhecer pessoalmente seu ídolo, o organista Dietrich Buxtehude, durante um concerto. Diz-se que as aulas que teve com Buxtehude influenciaram decisivamente o jovem Bach na forma de interpretar o órgão e compor suas obras-primas musicais. Charles Darwin só chegou à sua teoria da evolução das espécies depois de ter se aventurado pelos sete mares a bordo do Beagle.
A paisagem brasileira foi crucial na obra do pintor e desenhista francês Jean-Baptiste Debret, autor de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Assim como 50 dias percorridos em lombo de cavalo pelo sertão mineiro foram essenciais para que Guimarães Rosa produzisse Grande Sertão: Veredas, sua obra máxima. O americano Henry Miller produziu alguns de seus livros mais famosos, como O Colosso de Marússia e Trópico de Câncer, durante suas incursões a países como a Grécia e a França, entre as décadas de 1930 e 1950. Mais recentemente, em 1986, outro escritor, Paulo Coelho, mudou completamente a sua vida depois de cumprir uma peregrinação de 830 quilômetros pelo caminho de Santiago de Compostela. "Quando se chega a Santiago, você está cansado e o caminho já foi percorrido. É nesse momento que se reconhece que o destino é sua paixão, e a viagem, sua alegria", escreveu Coelho sobre sua busca espiritual.

Para fazer de uma viagem um capítulo inesquecível e transformador é necessário, antes, saber escolher o melhor destino. "Esse capítulo será efetivamente escrito dependendo do que vier a ser vivenciado durante a estada em outro lugar, das reflexões e decisões de vida que serão feitas e tomadas, do que se aprendeu por conhecer ambientes e pessoas diferentes", considera Flavio Gikovate. O simples ato de sair do cotidiano e arejar a cabeça também já pode proporcionar um avanço na busca da sustentabilidade pessoal. "Assim, ao retomar o trabalho e os problemas do dia-a-dia, é possível estar em melhores condições para conseguir as soluções mais adequadas aos dilemas que nos atormentam", conclui o psicoterapeuta.

O empresário Rogério Zagallo é um desses viajantes que se descobriu em uma aventura e voltou para casa de cabeça fresca o suficiente para dar novo rumo a sua vida. Foi em 1994, aos 21 anos. Acabara de perder o emprego, estava sem namorada e em sua conta bancária havia 7 000 dólares. Tinha planos de comprar um carro, até que deu de cara com um anúncio no jornal sobre um trekking de 23 dias ao acampamento - base do Everest. "Disse a mim mesmo: por que não? Embarquei uma semana depois." O dinheiro de Zagallo era suficiente para exatos três meses de viagem, e então ele resolveu conhecer também o Nepal e o Rajastão. Depois ainda teve disposição para ir a Escócia, França, Portugal e Espanha. Zagallo voltou sem um tostão no bolso, mas com a bagagem abarrotada de novas experiências. "Nunca tinha viajado sozinho. Nessa condição você faz exatamente o que quer, mas às vezes toma decisões erradas, corre riscos e aprende a contornar situações. Voltei realmente modificado".
Flavio Gikovate acredita que não adianta se decidir a visitar museus só porque todo mundo acha bacana. "Viajar é a hora de curtir o seu melhor programa, levando em conta as vivências anteriores." O psicoterapeuta faz de seus ensinamentos uma regra para si próprio. "Tenho tido muitas alegrias em minhas viagens de descanso, justamente porque eu e minha esposa sabemos dos nossos programas prediletos, temos gostos parecidos. Apreciamos repetir os mesmos lugares, sempre grandes cidades em que fazemos longos passeios a pé ou de carro. Ir a locais já bem conhecidos parece ativar a criatividade."

A companhia certa é outro quesito importante. Que o diga o casal de professores de educação física Grace Downey e Robert Ager. Os dois se conheceram em São Paulo e num belo dia descobriram que guardavam o mesmo desejo: explorar os quatro cantos do planeta de carro. A idéia foi amadurecendo até que, em janeiro de 2002, largaram tudo e seguiram o destino que pretendiam. Em três anos e meio percorreram nada menos que 168 mil quilômetros, desvendando todos os continentes. Nessa aventura foram muitas as descobertas, muitas delas pessoais. "A liberdade de escolher o nosso caminho na estrada é algo único e especial, assim como a constatação de que nós, seres humanos, somos capazes de atingir muito mais objetivos do que imaginamos", afirma Grace.

Com o orçamento acanhado, o casal procurava a simplicidade para não ter muitos gastos. Prova inconteste de que uma viagem dos sonhos não é necessariamente sinônimo de gastança e ostentação. "Por 10 dólares a diária, desfrutei das praias mais paradisíacas do planeta, em lugares como o Taiti ou as Ilhas Fiji", orgulha-se o fotógrafo Bruno Alves. E aconselha: "Mesmo que o seu sonho esteja um pouco acima do que pode pagar o seu bolso, economize até que consiga realizá-lo. Viajar é investir na própria sustentabilidade".

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